Afinal de contas, o que vai na cabeça de Roger Schmidt? — As respostas que nos dá a pré-época encarnada.
Depois de uma época abaixo das expectativas — e que deixou o lugar de Roger Schmidt em risco — o Benfica tenta esquecer os fantasmas do passado e entrar em 2024/2025 com o pé direito. 6 amigáveis depois, está claro o caminho que a equipa técnica das águias pretende seguir para a nova época. Neste texto, procuro esclarecer e dar a minha opinião sobre que caminho é este e que dúvidas (e certezas) Roger Schmidt aparenta ter.
1. O ADN do Benfica de Schmidt
De todos os defeitos que existem, há um que é injusto apontar a Roger Schmidt: falta de identidade. Quer nos seus melhores momentos, quer nos seus piores, o Benfica do alemão teve sempre uma forma de jogar muito própria e da qual raramente abdica. Futebol ofensivo, intenso, de pressão alta e muita posse. É certo que nem sempre houve sucesso na execução destas ideias, mas elas estiveram sempre lá e para entendermos melhor o que Schmidt quer fazer de diferente em relação à época anterior urge que compreendamos primeiro aquilo de que ele não vai abdicar.
A ideia central do modelo de jogo de Roger Schmidt é o gegenpressing. O alemão quer que os adversários sucumbam sempre à pressão intensa das suas equipas e por isso exige aos seus jogadores que recuperem a bola em zonas altas, que defendam a correr para a frente e não para trás, que tenham sempre a baliza adversária em mente, estejam ou não em posse. Tudo o que define o seu futebol deriva daqui. A atacar, o Benfica não vai rodar a bola de posição em posição, de espaço em espaço, como o Sporting muitas vezes faz. Nunca vimos Otamendi e António Silva a pisar a bola, numa tentativa de atrair a pressão adversária como Inácio e Diomandé fazem recorrentemente. Assim como nunca vimos Trincão ou Pote a baixar quase para junto dos seus centrais para virem buscar jogo (pelo menos sem alguém subir uma casa para ocupar os espaços destes) como Di María ou João Mário fizeram recorrentemente na época passada. Treinadores diferentes, formas de jogar diferentes. Se Amorim prefere um sistema mais rígido, Schmidt não se importa que os seus jogadores vaguem pelo campo todo e vivam no caos constante (≠ de desorganização) porque perder a bola não é um problema mas sim uma oportunidade, já que é nestes momentos que o adversário está mais despreparado e a sua equipa pode pressionar rapidamente, recuperar a bola e ser vertical em direção à baliza.
Ao fim de 2 épocas, só os mais desatentos é que ainda não conhecem as especificidades do 4–2–3–1 do treinador alemão e, tendo as mesmas em conta, vamos então conhecer a forma como Schmidt parece querer encaixar as suas ideias no seu novo plantel.
2. A dupla de meio-campo
Este é talvez o aspeto que mais dúvidas tem gerado na massa adepta encarnada ao longo da pré-época: o que quererá Schmidt com Florentino e Barreiro em simultâneo no miolo, dois jogadores de perfil relativamente semelhante? Para uma equipa com uma média de 60% de posse de bola no campeonato, pode parecer, numa leitura mais superficial, contraproducente jogar com dois jogadores no meio-campo que se destacam pelo que fazem precisamente nos restantes 40% do tempo. Contudo, é por isto que é importante que contextualizemos a nossa análise. O Benfica vai jogar com dois laterais muito ofensivos, que vão estar sempre muito longe dos centrais na transição defensiva. O Benfica vai tentar pressionar alto, mesmo com Di María em campo. O Benfica vai atacar com os seus médios-ala posicionados no mesmo corredor, comprometendo assim uma ocupação mais equilibrada do espaço. Atacando com 6, não fará sentido ter no meio-campo dois jogadores como Florentino e Barreiro? São dois jogadores que acrescentam defensivamente e que sufocam o adversário na pressão. Recordo, o Benfica sente-se confortável a jogar em cenários de transição constante, não se importa de perder a posse de bola se a recuperar segundos depois com o adversário numa situação mais desconfortável. O futebol são 90 minutos, será que as equipas mais pequenas do nosso campeonato vão ser capazes de estar este tempo todo sufocadas nos seus últimos 30 metros? É que esta dupla de médios permite isso mesmo, que o Benfica se instale no meio-campo adversário (através do gegenpressing) e que os seus jogadores mais criativos arrisquem mais (já que estão mais protegidos).
Além de que, volto a frisar, Schmidt pede aos seus jogadores da frente que peguem no jogo, que sejam 3ºs e 4ºs médios. Sem um jogador da qualidade de Enzo, Schmidt sabe que o Benfica não pode atacar socorrido na ideia de que tem alguém capaz de ditar o ritmo do jogo desde atrás. Por isso, precisa de fazer as coisas de forma diferente. Com talentos como Di María, Neres, Kokçu, Rollheiser ou Prestianni, é natural que a forma de atacar do Benfica incida na criatividade destes, que sejam eles a ditar o ritmo do jogo. Como o fazem deste a frente, o ritmo é mais acelerado, vertiginoso, arriscado… Assim, é natural que o restante da equipa tenha que se adequar aos “motores” do modelo de jogo encarnado. A dupla Florentino-Barreiro faz precisamente isso e, desta forma, não será um entrave em dias de elevadas doses de posse de bola. Pelo contrário: vai potenciar a inventividade dos mais criativos e permitir que estes se aproximem, combinem e arrisquem mais. A ideia de que com este meio-campo a bola não vai chegar ao ataque é falsa, porque a intenção é que sejam precisamente os jogadores de ataque a levar a bola até à área. E faz sentido que assim seja.
3. O perfil dos médios-ala e do segundo-avançado
No ponto anterior, vinquei bastante a ideia de que a fase de criação do Benfica não está dependente do seu duplo-pivô mas sim dos homens que se posicionam atrás de Pavlidis — os dois médios-ala e o segundo-avançado. Mas de que forma? Em ataque posicional, a estrutura-base do Benfica é a seguinte:
Como as águias não atacam a partir de um sistema rígido, onde a superioridade é criada pela procura constante do homem-livre, mas sim a partir de uma estrutura fluída, onde as vantagens surgem a partir do domínio que os seus jogadores exercem sobre o tempo do jogo, isto é, da velocidade e imprevisibilidade com que se associam, o posicionamento ofensivo do Benfica visa garantir a proximidade dos seus atacantes e exige jogadores muito criativos. Assim, o perfil dos seus médios-alas e do segundo-avançado tem um impacto determinante no sucesso da manobra ofensiva dos encarnados.
Olhando para a pré-época do Benfica, podemos afirmar com segurança que Aursnes será o titular a médio-ala esquerdo. Enquadro o norueguês como um 3º médio, isto é, um jogador capaz de baixar para receber bola como um centro-campista, permitindo assim a subida do lateral para acelerar jogo. No fundo, Aursnes é um facilitador: não se destaca pela sua criatividade, mas sim pela (aparente) simplicidade do seu jogo, pela forma assertiva como guia a sua equipa no ataque. No modelo de jogo de Schmidt, este tipo de jogador é fundamental, já que é aquele que, contrastando com a imprevisibilidade dos restantes, torna a equipa mais… imprevisível. João Mário também é esse tipo de jogador. Por isso mesmo, não creio que estes possam jogar juntos no ataque, como aconteceu na 1ª parte do jogo diante do Fulham. Dada a carência criativa do duplo-pivô do Benfica, exige-se “magia” aos homens que jogam mais à frente. Aursnes e João Mário não são fantasistas e, por isso, coexistindo no mesmo onze, delegam a importantíssima missão de dar agressividade ao ataque aos dois laterais e ao segundo-avançado. Apesar de talentosos, Beste, Carreras e Bah não são jogadores sobre os quais deve cair parte significativa da responsabilidade criativa de uma equipa. Assim, torna-se fundamental que os dois jogadores que complementam o jogador mais cerebral do ataque encarnado (e há outro, para além de Aursnes e João Mário) tenham o perfume de Di María, Neres, Prestianni ou Marcos Leonardo. Jogadores que arrisquem, que tornem mortais as aproximações que Schmidt desenha no seu modelo de jogo. A equipa está construída em redor deles — de outro modo, há escolhas (como a coexistência de Florentino e Leandro Barreiro ou a presença de um 3º médio) que deixam de fazer sentido.
4. As dúvidas de Schmidt
Apesar de ter deixado clara a forma como, a partir das suas ideias, pensa o plantel encarnado, Schmidt também mostrou que ainda tem várias dúvidas respetivamente a algumas posições. Dado que lidera um plantel de tal modo extenso que se podem montar dois onzes iniciais sem um desnível significante, não é um escândalo que assim seja. Contudo, urge que as suas dúvidas sejam esclarecidas o mais rapidamente possível de forma a não se voltar a suceder a confusão de época passada, onde muitas das decisões pareciam mais um ato de fé do que uma opção plena de convicção. Eis então as escolhas que ainda (parecem) atormentar o alemão:
4.1. A dupla de centrais
Com a ida do capitão Otamendi à seleção olímpica argentina e as férias de António Silva, Roger Schmidt viu-se obrigado a jogar na pré-época com uma dupla de centrais diferente daquela em que apostou nas duas épocas anteriores. Apesar de ter testado alguns jovens do Seixal, como Adrian Bajrami ou Gustavo Marques, foi com naturalidade que Morato e Tomás Araújo lideraram a defesa encarnada na pré-época. Dado o regresso tardio de Otamendi, há a possibilidade de um destes entrar no onze das águias no começo da época, assumindo assim o posto de “3º central” do plantel ou, quem sabe, roubar mesmo a titularidade ao argentino. Na minha opinião, Tomás Araújo é um central bastante superior a Morato, não só pela segurança que dá defensivamente (o brasileiro, apesar de forte, tem recorrentemente abordagens defensivas muito más), mas também pelo que oferece na 1ª fase de construção. Em função das características do seus médios (Renato também não é o médio cerebral que Florentino e Barreiro não são), é fundamental que os centrais do Benfica sejam capazes de superar uma pressão alta, como aquela que Brentford, Feyenoord e Fulham tentaram. A equipa inglesa, inclusive, pressionava de forma a forçar Trubin a sair a jogar pela esquerda, um claro indicador da diferença de qualidade entre Morato e Tomás Araújo. Apesar disto, na 2ª parte, foi o brasileiro que fez dupla com António Silva. Um sinal (mau) de Schmidt?
4.2. O lateral-esquerdo
Esta é uma das dúvidas que acredito que Schmidt não vai solucionar ao longo da época — e não há problema nenhum nisso. Carreras e Beste são dois laterais de qualidade, que encaixam na perfeição na ideia que o treinador alemão tem para eles: fazer o flanco todo, lançar cruzamentos para a área, ser intenso na pressão… No fundo serem a “flecha” no “arco” dos médios-alas encarnados. Se Beste oferece mais vigor físico e capacidade nas bolas paradas (pode ser importante na ausência de Di María), Carreras dá mais variabilidade ofensiva ao Benfica pela capacidade que tem em vir para dentro e dar a linha ao médio-ala. Se bem-gerida, dado o contraste entre os dois jogadores, a luta pela titularidade da lateral esquerda do Benfica tem tudo para ser positiva. Se bem gerida…
4.3. O segundo-avançado e os médios-ala
Sem Rafa (e um jogador de perfil semelhante a este), a posição de segundo avançado é um dos grandes pontos de interrogação do Benfica 24/25. Para aqui, Schmidt tem duas vias: ou escolhe um jogador possante, rápido, associativo, bom no drible e com presença de área, como Prestianni e Marcos Leonardo; ou escolhe alguém para organizar a correria encarnada e meter os colegas cara-a-cara com o guarda-redes adversários, como Kokçu, que no fundo seria mais um médio-ofensivo do que um segundo-avançado. Na minha opinião, esta é uma escolha que está dependente dos médios-ala que acompanham o “10” encarnado no ataque. Se joga Aursnes, fará sentido jogar Kokçu? Se joga Neres de um lado e Di María do outro, fará sentido jogar Prestianni ou Marcos Leonardo (que já parece ter sido injustamente esquecido face às grandes exibições de Prestianni)? Com o vasto leque de opções que tem, Schmidt beneficia mais em ter um ataque que se complementa do que um ataque homogéneo. E é vital que o treinador alemão estenda a complementariedade ao restante da equipa. Se joga Florentino e Barreiro no meio-campo, o ataque tem que ter mais irreverentes que equilibradores. Se joga Neres à esquerda, faz mais sentido ter Carreras do que Beste atrás dele. Para Roger Schmidt, montar um onze inicial será como fazer um puzzle: a imagem só ficará completa com todas as peças bem encaixadas.
Em conclusão, os seis jogos da pré-época encarnada já deram muitos indicadores do que pode ser a época encarnada. E, na minha visão, muitos dos indicadores são positivos. Goste-se ou não da ideia (eu gosto), pelo menos esta, ao contrário da época passada, existe. Contudo, a época propriamente dita ainda nem começou e, por isso, as respostas a todas as dúvidas que a pré-época encarnada nos deixou, desde a dupla de meio-campo ao perfil dos jogadores de ataque, só será dada nos “jogos a valer”. Esses sim, são o verdadeiro teste de fogo àquilo que vai na cabeça de Roger Schmidt…